Um novo paradigma da visualidade
Na virada do século XIX para o século XX, a fotografia representou uma reconfiguração radical na visualidade. À medida em que temos uma tecnologia que permite uma representação da realidade relativamente fiel e instantânea, a pintura e demais formas de artes visuais se libertaram do desafio da representação do real, e com isso uma nova forma de artefatos, formas de representação e linguagens visuais se colocaram no nosso cotidiano.
Podemos estar experimentando um fenômeno semelhante nesse início de século XXI com a ascensão das IAs generativas. Porém, a mudança de paradigma aqui não é sobre um modo de ver ou de se representar a visualidade, mas talvez numa reconfiguração da arte como indústria e cultura de massa. Um palpite possível é de que a arte enquanto produto da indústria cultural tende a se tornar mais e mais sintética, o que pode finalmente libertar artistas para se produzir seu trabalho sem as ambições e pressões que a produção industrial impõem.
À primeira vista pode ser uma leitura otimista, mas, se a indústria cultural é majoritariamente sintetizada enquanto o capitalismo permanece o paradigma de organização socioeconômica de maior parte do planeta, então essa leitura se torna quase apocalíptica. A desintegração de um mercado de trabalho com a manutenção da lógica de mercado só tende a gerar precarização e desemprego. É de se esperar que, com essa proliferação de arte sintética por aí, o trabalho manual renove seu valor, e mesmo produtos frutos da reprodutibilidade técnica podem ganhar uma aura. Porém, esse tipo de mercadoria tende a ganhar o status de luxo que diminui oportunidades de trabalho e dificulta o acesso ao seu produto. Ou seja, podemos ter dois caminhos possíveis: de um lado, uma espécie de consumo de luxo de arte feita por humanos; noutro, artistas que ainda vendem a sua força de trabalho como operadores de IA (considerando as mudanças cognitivas que já comentei aqui) e que terão no trabalho humano um hobbie ou projeto paralelo. Em todos os casos, é de se esperar uma redução do mercado de trabalho na indústria criativa.
Os argumentos mais usados pelos artistas contra a IA se baseiam em alguns aspectos morais – estudamos muito para isso pra agora sermos roubados, etc – ou relativamente conservadores, no sentido da manutenção do modelo capitalista da arte enquanto mercadoria. É absolutamente compreensível a tomada dessa posição, já que vivemos afundados na máxima do Mark Fisher: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mas, no fim das contas, hoje parece meio inevitável que grande parte da demanda comercial de arte seja impactada pela IA generativa, o que pode precarizar mais a força de trabalho vendida, mas também pode oferecer à arte um caminho longe da lógica da mercadoria.