Um movimento relativamente popular entre a classe média durante a pandemia foi o deslocamento das cidades para o interior. Com o advento do trabalho remoto, muitas pessoas se permitiram uma mudança de estilo de vida, morando em regiões de serra, fazendas, ou cidades pequenas litorâneas. Em geral, com uma mesma motivação: se afastar do ruído dos grandes centros urbanos, desacelerar o ritmo da vida e se aproximar mais da natureza. De uma certa maneira, podemos fazer traçar um paralelo desse fenômeno com o conceito de digital garden.

Em resumo, um digital garden é uma maneira de organização e publicação de conteúdo que não é exatamente um site pessoal, tampouco um blog. Não precisa ser rígido, estruturado ou finalizado. A metáfora do jardim serve justamente para se referir a ideia de cultivo, observação, crescimento e organicidade. Esste texto da Maggie Appleton resume bem a história do conceito, que remete aos primórdios da web e ao fascínio do hyperlink como disrupção na concatenação de conhecimento. Remete a tempos mais simples, onde a internet era um grande campo vasto, que estimulava o usuário a explorar os diversos sites (sítios) disponíveis.

A web 2.0 foi como um processo de urbanização, que construiu estradas, prédios, grades e condomínios sobre esses grandes campos. É como se fosse a SEOP do Eduardo Paes. A ascensão dos blogs, e posteriormente das redes sociais, com suas timelines e seus perfis, trouxeram uma série de experiências positivas, como a popularização das formas de se publicar conhecimento/conteúdo na web. Afinal, é muito mais fácil criar uma conta no fotolog ou no facebook do que subir um site próprio. Mas a conta a se pagar por essa facilidade é muito alta: o que era para ser uma grande ágora democrática se tornou um conglomerado de condomínios fechados, extremamente padronizados ao mesmo tempo que pouquíssimo regulados. É como se, em pouco tempo, um pequeno conjunto de cidades relativamente pacatas de tornassem uma megalópole apinhada de prédios com apartamentos minúsculos, ruas perigosas, outdoors luminosos e barulhetos e muita poluição; ou seja, algo como uma cidade pensada pelo William Gibson.

A metáfora do jardim não é sobre eficiência; não é sobre ter o maior, mais completo e mais bem cuidado jardim, mas sim sobre ter um espaço onde você passa o tempo cultivando e cuidando das suas coisas, que crescem a partir do seu próprio ritmo e movimento.

Dado esse cenário, é compreensível imaginar uma saturação desse ambiente e um desejo de “retorno à natureza”, por isso o resgate e a retomada da ideia de digital gardens, que é super bem-vinda. Porém, tenho visto esse conceito relacionado a um outro que acho bem problemático: a ideia do segundo cérebro.

As ferramentas de produtividade se popularizaram nas últimas décadas, cumprindo um papel misto de agenda, diário, caderno de notas, planner. Pense em Evernote, Notion, Obsidian, Google Keeper, etc. Um dos vários possíveis usos desse tipo de ferramenta é a ideia de segundo cérebro, que seria algo como um ambiente onde você registra tudo que você vê, ouve, lê, pensa, sente, experimenta, etc.

Eu adoro esse tipo de ferramenta e estou sempre de olho quando surge algo novo nesse mercado. Consegui estruturar várias coisas que faziam sentido serem rastreadas e registradas na minha vida, usando várias delas para diferentes propósitos. Contudo, a ideia de “segundo cérebro” me incomoda. É um reflexo da cultura da produtividade neoliberal que transforma tudo em dado, inclusive seu lazer, inclusive o seu pensamento. É o fim da memória. Waly Salomão dizia que “a memória é uma ilha de edição”, mas o segundo cérebro eclipsa a delícia da reinterpretação da lembrança que só o primeiro cérebro proporciona. Joan Westenberg deletou seu segundo cérebro recentemente, e o que mais me chocou foi a abrangência que ele se propunha a alcançar com essa iniciativa. Apesar de adorar ferramentas de produtividade, tomar notas e realizar registros pessoais, nunca tive a pretensão de alcançar tantas áreas da minha vida com tanta profundidade assim.

Waly Salomão dizia que “a memória é uma ilha de edição”, mas o segundo cérebro eclipsa a delícia da reinterpretação da lembrança que só o primeiro cérebro proporciona.

Tenho visto algumas pessoas relacionado o digital garden e segundo cérebro, o que me parece ser como fugir da cidade grande pra, sei lá, morar dentro de uma fábrica de pregos. Produzir algo significativo a partir de experiências significativas é melhor do que produzir ultraprocessados a partir de uma lógica de consumo de conteúdo, mas assumir a ultraprodutividade neoliberal transforma o que deveria ser um gesto singelo e terapêutico como a jardinagem numa linha de montagem industrial exaustiva. A metáfora do jardim não é sobre eficiência; não é sobre ter o maior, mais completo e mais bem cuidado jardim, mas sim sobre ter um espaço onde você passa o tempo cultivando e cuidando das suas coisas, que crescem a partir do seu próprio ritmo e movimento.

Encaro esse blog como parte do meu jardim digital, que no fim das contas pode envolver qualquer criação minha. Tenho pensado na minha página pessoal como um espaço onde posso incluir qualquer tipo de “produção de conteúdo” que me pareça fazer sentido compartilhar com o mundo, seja sobre minhas atividades profissionais, acadêmicas, artísticas, ou registros do cotidiano. A ideia é que eu posso publicar ou despublicar o que eu quiser, da forma que eu quiser; cada parte do jardim pode ter uma arquitetura diferente, uma identidade visual diferente. Posso fazer e publicar aos poucos, sem necessariamente notificar a ninguém dessas atualizações – quem descobrir esse espaço e quiser ver, pode vir. Talvez interagir com outras pessoas online assim seja mais difícil do que navegar por uma rede social, mas, pelo menos para mim, é bem mais prazeroso; é como pegar a estrada e curtir novas paisagens, descobrir novos lugares e se encantar com a infinidade do mundo ao seu redor.