A IA (também) é um problema de design
Ano passado escrevi texto argumentando sobre os problemas de design inerentes aos devaneios californianos sobre o metaverso. O mesmo acontece nessa nova temporada de ferramentas de inteligência artificial. Aparentemente, temos um padrão a ser observado aqui.
As primeiras décadas de consolidação da internet e da vida digital se basearam fortemente no conceito de experiência do usuário, que é uma tradução, para o mundo digital, da ergonomia de dos “fatores humanos” que orientaram o design de objetos industriais ao longo do século XX. A premissa é a de que os produtos precisam oferecer a experiência com menor fricção possível para os usuários. Uma frase que sintetiza esse conceito é “don’t make me think”, nome de um dos livros mais populares sobre usabilidade do início do século.
A ideia de uma boa usabilidade possuía, evidentemente, uma motivação comercial, já que ganharia a concorrência o produto mais fácil de se utilizar e se adotar no dia-a-dia. Assim foram projetados os principais sites e aplicativos que fazem parte e se tornaram indispensáveis no nosso cotidiano, desde os sistemas operacionais até as redes sociais. Contudo, junto do derretimento do otimismo tecnológico e da exposição da radicalização techbro emergiu aquilo que o tecnólogo Cory Doctorrow entitulou de “enshitfication”, ou, em bom portugês: bostificação.
O argumento de Doctorrow é de que a qualidade da usabilidade dos produtos digitais derrete com o tempo, à medida que esses produtos ganham popularidade e muitas vezes parecem inescapáveis, como é o caso das redes sociais. A partir desse ponto, a preocupação com a usabilidade deixa de ser prioritária, dando um espaço cada vez maior aos chamados “dark patterns”.
O meu ponto aqui é de que os principais produtos digitais baseados em IA de hoje – chatGPT, claude, midjourney, veo3, etc – surgem num período de baixa da imporância do design no desenvolvimento de software. Por anos, designers travaram uma batalha para ocuparem posições mais estratégicas nas organizações, ao mesmo tempo em que tentavam popularizar as metodologias de design como uma forma de abrir oportunidades de consultoria. Esse terreno aparentemente foi sendo perdido nos últimos anos, e acredito que conseguimos perceber isso claramente nesses produtos de IA.
Todos são baseados em modelos de linguagem, e a língua é talvez a primeira interface entre humanos. Então, se utilizar do chat como forma de humanizar uma conversa com uma máquina parece fazer sentido, ainda mais quando o machine learning faz essas máquinas responderem feito gente. Contudo, as possibilidades de interação com a IA generativa são enormes, e o chat, o prompt, acabam reduzindo cognitivamente essas possibilidades. As ferramentas de geração de imagem, áudio e vídeo exploram um pouco mais alternativas para otimizar essa interação, mas ainda estamos muito longe do estado da arte da antiga “interação humano-computador”.
O vídeo do Sam Altman com o Jonathan Ive é uma das coisas mais bregas e que exalam masculinidade frágil já vistas, além de claramente fazer parte do pacote de promessas de futuro próximo que o CEO da OpenAI faz para manter os investidores com ele. Porém, sinaliza algo importante: é preciso um pensamento de design para fazer com que a IA deixe de ser apenas um estagiário mais inteligente do que você ou um gerador de conteúdo audiovisual de baixa qualidade. Pensar sobre como seres humanos interagem com essas máquinas é tão ou mais importantes do que pensar sobre as próprias máquinas em si.
É uma pena que o fascismo incrustado no vale do silício não faça essa parecer uma boa notícia; a bostificação já nos mostra que, por mais que de início a usabilidade seja um ativo importante para os produtos digitais, ela é deixada de lado assim que não faz mais sentido para o capital.